Lembranças
Nas noites de Sábado e Domingo, era sagrado o footing da Rua Benedito Valadares, no trecho compreendido entre a Praça Padre José Pereira Coelho e Rua Dr. Higino. (Uma informação às novas gerações: footing, palavra inglesa, assumiu em português o sentido de passeio metódico a pé, principalmente noturno, em espaços públicos. Geralmente, os atores são pessoas jovens em busca de um alegre convívio, um vai-e-vem de moças e rapazes, a maioria sonhando em puxar um namoro.)
Elas se apresentavam a caráter: botavam os melhores vestidos, os colares, brincos e pulseiras mais bonitos, saias e sandálias da moda, borrifavam-se do melhor perfume; eles, na maioria engravatados, com lencinhos à vista no bolso de cima do paletó, embatumavam os cabelos de gel para ajeitar as “ondinhas” e os “topetes” à Tyrone Power ou Hunphrey Bogart, figuras hollywoodianas vistas com freqüência nas telas dos lendários Cine Vitória e Imperial Cine. Seria imperdoável esquecer que naquele pra-lá-pra-cá noturno nasceram muitos namoros, que evoluíram naturalmente para noivados e casamentos, como podem testemunhar muitos dos que me lêem neste momento.
Fato marcante, indelével em minha memória, é que o footing era bruscamente interrompido às 7 horas, quando repicava o sino da matriz, plantada no centro da praça, e se ouvia o tilintar da campainha acionada pelo ajudante, anunciando a bênção do Santíssimo. Como que tocados por uma aura mágica, os transeuntes paravam onde estivessem, imóveis ficavam como estátuas petrificadas. Estranho é que havia um “limite” territorial para a prática dessa devoção: das imediações do Centro Literário para trás, os fiéis sentiam-se desobrigados da tal “posição de sentido”. Após breve intervalo de fervoroso silêncio, em que os próprios namorados se desgrudavam, repicava de novo o sino para anunciar o término da cerimônia. Imediatamente se refaziam o alarido de vozes e o ruído dos passos das pessoas concentradas naquele trecho de rua. Toda época tem a cultura que merece...
As lojas e vendas espalhadas ao longo da rua, se não quisessem receber visitas nada convencionais, tratassem de abaixar as portas. Os passantes também sumiam num repente, protegendo-se do tropel e de possíveis chifradas e pisões. Os vaqueiros, a cavalo, vinham dos lados e atrás da boiada, assoprando seus berrantes e entoando os refrões monótonos: êêêêêh boi! Êêêêêh boi! Enquanto o gado seguia sua marcha nervosa, fustigado por compridas varas de ferrão. Imagine-se o estado em que, depois, ficavam os passeios e o leito da rua, todo emporcalhados pelas broas de estrume. Muitos moradores não perdiam tempo e, sem o menor pudor, recolhiam em baldes e bacias a massa quente e malcheirosa, adubo de inigualável qualidade orgânica para suas hortas e jardins...
Março 2008