Lembranças




Pedro Moreira
Professor de Português, revisor, consultor, autor dos livros Casos & Coisas do Pará Antigo, Cronicontos e O Pássaro e a Dona & Outros Textos.
Nas noites de Sábado e Domingo, era sagrado o footing da Rua Benedito Valadares, no trecho compreendido entre a Praça Padre José Pereira Coelho e Rua Dr. Higino. (Uma informação às novas gerações: footing, palavra inglesa, assumiu em português o sentido de passeio metódico a pé, principalmente noturno, em espaços públicos. Geralmente, os atores são pessoas jovens em busca de um alegre convívio, um vai-e-vem de moças e rapazes, a maioria sonhando em puxar um namoro.)

Elas se apresentavam a caráter: botavam os melhores vestidos, os colares, brincos e pulseiras mais bonitos, saias e sandálias da moda, borrifavam-se do melhor perfume; eles, na maioria engravatados, com lencinhos à vista no bolso de cima do paletó, embatumavam os cabelos de gel para ajeitar as “ondinhas” e os “topetes” à Tyrone Power ou Hunphrey Bogart, figuras hollywoodianas vistas com freqüência nas telas dos lendários Cine Vitória e Imperial Cine. Seria imperdoável esquecer que naquele pra-lá-pra-cá noturno nasceram muitos namoros, que evoluíram naturalmente para noivados e casamentos, como podem testemunhar muitos dos que me lêem neste momento.

Fato marcante, indelével em minha memória, é que o footing era bruscamente interrompido às 7 horas, quando repicava o sino da matriz, plantada no centro da praça, e se ouvia o tilintar da campainha acionada pelo ajudante, anunciando a bênção do Santíssimo. Como que tocados por uma aura mágica, os transeuntes paravam onde estivessem, imóveis ficavam como estátuas petrificadas. Estranho é que havia um “limite” territorial para a prática dessa devoção: das imediações do Centro Literário para trás, os fiéis sentiam-se desobrigados da tal “posição de sentido”. Após breve intervalo de fervoroso silêncio, em que os próprios namorados se desgrudavam, repicava de novo o sino para anunciar o término da cerimônia. Imediatamente se refaziam o alarido de vozes e o ruído dos passos das pessoas concentradas naquele trecho de rua. Toda época tem a cultura que merece...

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No meu tempo de menino, muitas fazendas ficavam pouco distantes do centro da cidade, espaços atualmente engolidos por vários bairros, tais os exemplos do São José, São luís, Patafufo, Belvedere, João Paulo II, Dom Bosco, Santos Dumont e outros. Assim, não espanta que, lá um vez, se deslocassem boiadas de uma fazenda para outra, ou rumo ao matadouro, tomando a Rua Benedito Valadares como corredor natural para o percurso.

As lojas e vendas espalhadas ao longo da rua, se não quisessem receber visitas nada convencionais, tratassem de abaixar as portas. Os passantes também sumiam num repente, protegendo-se do tropel e de possíveis chifradas e pisões. Os vaqueiros, a cavalo, vinham dos lados e atrás da boiada, assoprando seus berrantes e entoando os refrões monótonos: êêêêêh boi! Êêêêêh boi! Enquanto o gado seguia sua marcha nervosa, fustigado por compridas varas de ferrão. Imagine-se o estado em que, depois, ficavam os passeios e o leito da rua, todo emporcalhados pelas broas de estrume. Muitos moradores não perdiam tempo e, sem o menor pudor, recolhiam em baldes e bacias a massa quente e malcheirosa, adubo de inigualável qualidade orgânica para suas hortas e jardins...
Março 2008