Canto de Página

Fornos e quituteiras




Pedro Moreira
Professor de Português, revisor, consultor, autor dos livros Casos & Coisas do Pará Antigo, Cronicontos e O Pássaro e a Dona & Outros Textos.
Elas foram artistas, sim senhor. Quituteiras artistas, mãos de fada, tantos eram os dons que esbanjavam em suas especialidades. Não sem razão existe a tão prestigiada “arte culinária”, presente em todos os veículos de comunicação. Afinal, preparar sublimes broinhas de fubá ou um apetitoso bolo de milho verde não é tarefa para qualquer um, não...

Vamos logo aos fornos e às quituteiras aí do título. Pará de Minas sempre cultivou a tradição de suas biscoiteiras afamadas, essas artistas humildes, mestras na arte de sovar massas numa gamela de cedro, candeia ou pinho e transformá-las em manjar dos deuses e de nós outros, pobres mortais. Vou-me reportar à minha infância e retirar das brumas do tempo as figuras saudosas de duas de nossas melhores biscoiteiras: dona Leca Mendonça e dona Ica David, de quem minha mãe era freguesa habitual. Lembro-me de que, garoto de calças curtas, empunhando um balaio todo forrado com papel de pão, ia às suas casas buscar as encomendas, geralmente nos fins de semana. Dá-me água na boca só de citá-las: inigualáveis biscoitos de marca, feitos com ingredientes de primeira linha, como polvilho puríssimo, queijo artesanal de sedutor aroma, leite amanteigado, ovos galados colhidos no quintal; roscas de dourado aspecto, de massa amarela e tentadora; biscoitos de amendoim, tamanho médio, crocantes e saborosos, tais quais os de farinha feitos com banha, quebradiços, de aparência irresistível, tão irresistível que eu vinha degustando meia dúzia deles, caminho afora...

Dona Leca e dona Ica foram, pois, artesãs de rara habilidade na confecção de seus produtos. Delas me lembro com nitidez e guardo-lhes na memória a figura simpática de duas profissionais de marcante presença em seu tempo. Contemporâneas suas foram outras valorosas quituteiras, a exemplo de dona Lucila Marinho e dona Dolor, que não conheci pessoalmente.

Quase me esqueço de dizer que essas quatro artistas lidavam com grandes fornos de barro, esquentados a lenha, detalhe importante para justificar em parte a excelência de seus quitutes. Essas construções, herdadas da era colonial e da cultura indígena, até hoje têm lugar de honra em muitas fazendas e sítios. Ali, a cozedura de massas e carnes confere sabor peculiar às iguarias, motivo por que a modernidade tão cedo irá substituir a alvenaria por algum artefato de última geração.
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A propósito de fornos e quituteiras, até pouco tempo algumas trabalhavam com fornos de lenha, comprada de pobres mulheres, as “apanhadeiras de lenha”. Antes do raiar do Sol, saíam em grupos pelas matas próximas à cidade à cata de garranchos e galhos secos para depois vendê-los. Os tempos modernos, porém, estão mudando aceleradamente essa tradição. As biscoiteiras do século XXI consorciam-se em miniempresas, têm computador, alugam cômodos em pontos estratégicos à feição de qualquer loja e ali fabricam, em fornos industriais, seus bolos, biscoitos, suas roscas e broas de milho.

De tudo restou um solene adeus aos fornos de barro e, especialmente, às anônimas quituteiras — dona Leca, dona Ica, dona Lucila, dona Dolor, dona...
Maio 2008