Canto de Página

O jagunço e o santo




Pedro Moreira
Professor de Português, revisor, consultor, autor dos livros Casos & Coisas do Pará Antigo, Cronicontos e O Pássaro e a Dona & Outros Textos.
A história a seguir, eu a ouvi de meu pai, confirmada por contemporâneos seus. É visível como seus lances são típicos de uma dessas “tramas de época”, já corriqueiras em nossa televisão.

Aconteceu que, nos anos 30, Manuel (seria esse o seu nome) tocava uma fazenda na localidade de Água Limpa, em nosso município. Era uma criatura de boa índole, amigo do trabalho e, por todos os títulos, digno da admiração dos que com ele conviviam. Tais predicados não impediram que Manuel ganhasse um desafeto, um indivíduo invejoso e mau-caráter, tipo acabado de quem não suporta a felicidade e o progresso alheios. Era ele vizinho seu de terras confrontantes, e, sem o menor pudor, passara a hostilizá-lo, não se sabe por quê. Chamemos Domingos a esse perverso, apesar da nobreza do nome.

Coração duro, ele espalhava calúnias e difamações por toda a região, visando abalar a honra e o prestígio do outro. Não raro, desafiava-o com o deslocamento de cercas divisórias ou desviando pequenos cursos d’água. Por seu gênio pacato, o fazendeiro suportava tamanhas provocações, na maioria das vezes preferindo o silêncio e o desgosto ao confronto com um indivíduo canalha e truculento.

Eis que, certo dia, a noitinha já espalhando suas sombras, batem à porteira da fazenda. O próprio Manuel foi ver quem chamava. Deparou com um homem jovem montado a cavalo, rosto coberto por uma barbicha crespa e negra. O estranho foi logo anunciando:

— Boa-noite, “sô” Manuel! Meu nome é Davi e tô rasgando esta estrada mode chegá Igaratinga. Desejo saber se o senhor, com a graça de Deus, pode me concedê pousada por esta noite, que amanhã, bem cedinho, vou caçá meu rumo.

Manuel, tocado por um sexto sentido, convidou o estranho a entrar, mandou que se assentasse na sala, serviu-lhe água e café, proseou com ele por longos minutos e concordou em hospedá- lo por aquela noite. Esmerou-se num detalhe: não se esqueceu do animal viageiro, ordenando ao capataz que lhe desse água e alimento e o aliviasse dos arreios.

— Olhe, “sô” Davi, o senhor vai ficar bem acomodado num quarto lá nos fundos. Minha empregada já vai ajeitar ele pro senhor. Se o amigo quiser, pode tomar banho, tenho umas roupas sobrando. E tá convidado pra jantar com a gente.

O homem aceitou as gentilezas, aprontou-se como pôde, e dirigiu-se à mesa do jantar. Não faltou assunto, muito menos “causos” até a hora de se recolherem para o esperado sono. De manhãzinha, a família de Manuel — ele, a esposa e um casal de filhos — voltou a encontrarse com o desconhecido, que ainda se regalou com um farto café antes de apresentar agradecimentos, repassados de gratidão:

— “Sô” Manuel, num vô esquecê gentileza e bondade tanta. Fico agradecido de coração ao senhor e à sua família pela confiança e pela pousada. Deus lhes pague tanto favor...

Dizem que, depois de breve diálogo, Davi tomou a direção da fazenda de Domingos, a quem encontrou logo à porteira de entrada:

— Filho do diabo, quem tá carecendo um tiro na boca é o senhor! Não tive coragem de matá aquele homem santo, sujeito de bom coração! Vai pros “quintos” com sua malvadeza! — e jogou-lhe aos pés uma garrucha carregada, após o que saiu a trote largo, sob a luz de um Sol alegre e luminoso.
Janeiro 2008