Canto de Página

Histórias do fórum




Pedro Moreira
Professor de Português, revisor, consultor, autor dos livros Casos & Coisas do Pará Antigo, Cronicontos e O Pássaro e a Dona & Outros Textos.
Era numa tardinha, beirando as seis horas – isso vai para muitos anos. Alguns advogados e funcionários do fórum proseavam na sacada do prédio após a jornada de trabalho. Lá de cima, descortinava-se a praça Afonso Pena, com seu pequeno movimento de pedestres e os poucos veículos circulantes.

Uma hora, um dos advogados fixa o olhar numa mulher que atravessava a pista fronteira à escadaria do fórum. Franzindo a testa, ele exclama, entre curioso e surpreso:

— Uê, pensei que a Filomena tivesse morrido!

Filomena era uma senhora negra, já idosa, tida como uma das melhores quituteiras da cidade. Empadas, bolinhos de feijão e pastéis, singularmente saborosos, eram especialidades dela. Preparava-os pela manhã e, por volta do meio-dia, tabuleiro encarapitado na cabeça, saía a vendê-los, tarde toda, pelas ruas centrais.

Pois bem, a voz do doutor ecoara de tal forma no silêncio da praça que a boa senhora, apoiando na cintura o tabuleiro, firmou os pequeninos olhos negros na direção da sacada e soltou, em sua serena franqueza:

— Num murri não, doto! Tô im pé como Deus qué! Tive internada no hospitá, mode cunsertá umas macacoa de gente véia...

Elevou a voz e apontou o indicador para a sacada:

— Abre os zóio, dotô, que o sinhô ispicha as canela premêro que eu!

***
Era na sala de audiências. Advogados, tabeliães, escrivães, serventuários e até o juiz comentavam os fatos do dia e os flagrantes de seus trabalhos diários. Um dos advogados, professor de Português e Literatura, tido como possuidor de cultura e inteligência invulgares, ledor de grandes poetas, prosadores e filósofos, era também capaz de discorrer sobre assuntos da cultura geral. Conversa vai, conversa vem, surge-lhe a oportunidade de dar uma aula sobre a vida de Miguel de Cervantes Saavedra, o genial autor de Dom Quixote de La Mancha. Ia desfiando informações com a fluidez de quem reza o Pai-Nosso:

— Miguel de Cervantes levou dez anos para escrever sua monumental obra. Antes, ele perdera a mão esquerda na Batalha de Lepanto, aos 23 anos. Em 1575, aos 28 anos, caiu prisioneiro de piratas, tendo sido “vendido” a um comerciante no porto de Argel, na África, como escravo. Vejam, um gênio escravo! Por sorte, foi resgatado por uma ordem religiosa, que o “comprou” ao dito comerciante, para logo libertá-lo. Cervantes morreu pobre, em 1616, aos 69 anos.

Embasbacado diante de tanta sapiência, o juiz de Direito, novato na Comarca e desconhecedor da fama do advogado, ousou uma pergunta:

— De onde o senhor tirou isso?

Foi a conta. O advogado interpretou a pergunta como provocativa, um insulto à sua cultura. Por isso, devolveu-lhe com certo veneno nas palavras:

— Do Almanaque Capivarol deste ano...

(Informação necessária: Almanaque Capivarol era uma publicação do laboratório de mesmo nome, em formato de revistinha, e distribuído pelas farmácias vendedoras do fortificante “Capivarol”, feito à base de óleo de capivara. Nestes tempos de anorexia e bulimia, nem sei se ainda existirá essa panacéia.)
Fevereiro 2008